O Outro como Lupa
Para ver melhor, precisamos nos cercar de gente, diz a historiadora Por Gisela Gueiros — Nova York
* Texto publicado hoje na minha coluna no Valor Econômico
Man Ray, Glass tears, 1932
Em seu "O Livro dos Abraços", o escritor uruguaio Eduardo Galeano tem um miniconto que eu adoro. Trata-se de um menino que nunca tinha visto o mar. Seu pai o leva através das altas dunas de areia e, finalmente, depois de muito caminhar, se deparam com o horizonte. O rapazinho fica "mudo de beleza". Tremendo e gaguejando pede ao pai: "me ajuda a olhar?"
Essa história me faz pensar em como o outro funciona como uma lente. Uma espécie de ferramenta que nos permite ver melhor. Um pai, uma amiga, um professor, uma escritora, um artista… Às vezes nos ajudam a enxergar algo que já estava lá e a gente ainda não tinha visto – ou não tinha dado a devida atenção.
O artista americano Alex Katz conta que não gostou das pinturas de Paul Cézanne quando as viu pela primeira vez, no sul da França. Mas, depois, ao continuar dirigindo pela região, só conseguia "ver Cézanne" por toda parte. Como se tivesse sido contaminado pela visão de Cézanne. E isso, segundo Katz, é ser um grande artista – ter a capacidade de contagiar os outros com sua visão.
Quando fui guia do Museu Guggenheim, adorei descobrir o nome que eles davam aos educadores: "facilitadores". Gosto dessa ideia. Como se o outro fosse o intermediário ajudando o espectador a dar match com certas obras de arte.
Um exemplo é a obra Bibemus, do próprio Cézanne. Às vezes, falar do conceito de pixel — surgido nos anos 1960 — ajuda a ilustrar a revolução do pintor. Com seus “tijolinhos de cor” no plano, ele cria uma imagem. É a partir de um conselho dele para um aluno que aparece a ideia de que tudo na natureza pode ser representado com formas geométricas. Cézanne ajuda a entender as origens do Cubismo e foi uma grande referência para Picasso.
Bibemus, de Paul Cézanne: uma visão francesa — Foto: Museu Guggenheim
É preciso estar alerta para apreciar as belezuras do mundo e uma boa companhia pode ser fundamental para nos chamar a atenção. No começo do mês, na Bahia, tive a sorte de pegar emprestados como lupas os olhos de Rosa Montero. Ela escreve em seu livro "O Perigo de Estar Lúcida" sobre o dia em que viu algo muito especial, quando estava a bordo de um bote, na costa do Canadá. Sua perplexidade é tanta que comecei a querer – também – ver de perto uma coisa dessas. Estavam mar adentro numa área bem calma, entre pequenas ilhas. Motor desligado, silêncio e…
De repente, o mundo pareceu explodir. Houve um estrondo, um barulho desconhecido e formidável mas sem dúvida orgânico, uma respiração que parecia vir das entranhas do planeta, e um jato d'água disparou nas alturas e nos encharcou. Então, enquanto ainda caíam gotas sobre nós, começou a emergir algo inconcebível, algo que eu sabia que tinha de ser uma baleia, mas que nem meus olhos nem meu entendimento podiam processar, de tão magnífico que era (e tão incompleto: só pudemos ver fragmentos do colosso). Bem ao meu lado, (...) começou a passar um arco imenso de carne (...); e pouco depois passou o olho, um olho gigantesco que surgiu da água, percorreu todo o arco e afundou de novo no oceano, aquele olho assustador que nos olhava. (...) Especificamente: que me olhou e me viu. Esses olhos alheios, em que você se vê, nos conectam com o pulsar coletivo e são uma porta para a eternidade.
A experiência da autora diante da Jubarte contagia e inspira. Toca num ponto chave – é também o olhar do outro que faz com que a gente se reconheça, se constitua e, às vezes, se entenda. São as histórias que ouvimos, os livros que lemos, os filmes que assistimos, que, quando encontram sentido em nós, formam parte desse mosaico que chamamos "eu". Como único sobrevivente num acidente de um avião de carga no filme "O Náufrago", o personagem de Tom Hanks logo se encarrega de pintar um rosto numa bola de vôlei, "seu amigo" Wilson. O que seria dele sem o olhar daquele outro?
Para quem estiver lendo pelo e-mail, peço desculpa — no parágrafo sobre Alex Katz repeti metade de uma frase ao copiar e colar o texto do Valor. 🫢
Uau que texto! Amei a expressão facilitadores! É gentil 🧡