Hoje na newsletter em áudio, vou ler o item 270 do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. Para quem preferir, segue a transcrição abaixo:
270.
A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos — vis porque são nossos e vis porque são vis. O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela. O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele. Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo. Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.
Não é divina esta passagem? Já reli várias vezes e a cada vez gosto mais <3
da bastante pano pra manga pra pensar. Sem duvida é lindo e soa como uma verdade cristalina. Mas ...não consigo acompanhar qdo ele diz que "sentir sem possuir é guardar...". Pra mim o sentir sem possuir seria também outra linda definição de arte. Me parece tao similar ao "tudo que nos delicia que não seja nosso" - se eu entender a palavra "possuir" nesse contexto como processar e/ou transformar ai da certo
Oi, Gisela, cada uma dessas palavras é um deleite.
Ser (ser) é complicado, se não fosse a arte seria só sinusite. kkk Inverno seco é triste!
Um beijo!