A arte de caminhar
Janet Cardiff e George Bures Miller incluem o espectador no passeio, Richard Long demarca seu espaço, enquanto Vito Acconci prefere o trajeto do outro
Da minha coluna no Pipeline do Valor Econômico, aqui.
Por Gisela Gueiros — Nova York
Andar a pé ajuda a desenrolar as ideias, a desatar os nós do pensamento. O jeito que andamos diz muito sobre nós. Um dos meus livros favoritos da vida, de Frédéric Gros, se chama Caminhar: Uma Filosofia. Na publicação, o autor sugere que os hábitos de caminhada de cada filósofo afetam sua forma de pensar. E também indica que “caminhar é a velocidade certa para entender”. A cidade onde moro é famosa por sua “caminhabilidade” — com sapatos confortáveis e certa disposição, você pode ir a qualquer lugar a pé. E eu uso e abuso dessa possibilidade – cruzando a ponte do Brooklyn, onde vivo, com muita frequência.
A figura do flâneur, aquele espectador apaixonado da vida urbana, aparece pela primeira vez em Paris, num ensaio de Charles Baudelaire, de 1863. Na imaginação de James Joyce, em Ulysses, o personagem Leopold Bloom caminha pela cidade de Dublin ao longo de um dia inteiro, no que se tornou um dos livros mais icônicos do século 20. Mas há também na literatura os caminhantes que preferem a natureza. Li outro dia um poema divino chamado “Eu me pergunto se sentirei falta do musgo”. Nele, a autora americana Jane Mead parece nos levar para passear com ela. Um trecho, em tradução livre:
Eu me pergunto se sentirei falta do musgo
depois de vazar daqui tanto quanto sinto falta agora
só pensando em ir embora.
(...)
Havia campos de grama seca
cheirando a primeira chuva
depois de lama nova. Havia lama,
e havia a caminhada,
toda a bela caminhada,
e só isso me preencheu -
os cheiros, as pontas ásperas da grama.
(...)
Nas artes plásticas, muitos artistas já exploraram a ideia de vagar por aí. Um dos primeiros trabalhos de Walking Art é do inglês Richard Long. Numa viagem a St Martin, ele andou repetidas vezes – indo e voltando num mesmo caminho – até que a grama se achatasse e formasse uma linha. A foto que vemos nos museus registra o resultado dessa intervenção dele na paisagem. A presença do artista aparece apenas como uma sugestão.
Richard Long, A Line Made by Walking, 1967
Já o americano Vito Acconci brincou de stalker. Escolhia alguém aleatoriamente nas ruas de Nova York e seguia aquela pessoa até que ela entrasse num prédio. Em alguns casos, a saga durava minutos, em outros, horas. O artista passou pelos distritos de Manhattan, Brooklyn, Queens e Bronx. Seus trajetos são mostrados no mapa que virou obra de arte, como se vê na imagem abaixo. Ao entregar seu destino na mão de um estranho, Acconci acreditava que “quase não era mais um ‘eu’, me coloco a serviço desse esquema”.
Vito Acconci, Following Piece, 1969
Já Janet Cardiff e George Bures Miller, artistas canadenses que têm uma das obras mais incríveis de Inhotim – Forty Part Motet —, exploraram a ideia da caminhada artística incluindo o espectador no passeio. A primeira experiência é de 1991 e, desde de então, os dois já criaram inúmeras caminhadas em áudio e vídeo ao redor do globo.
Para vivenciar a obra, cada espectador recebe um tipo de iPod e fones onde escutam um guia em áudio narrando eventos que vão acontecer pelo caminho. Também há uma camada de sonoplastia que transforma a experiência numa verdadeira viagem! Já nas caminhadas de vídeo, os espectadores recebem uma tela de vídeo na qual assistem a um vídeo gravado anteriormente no mesmo lugar onde estão.
Só quem tem o dispositivo vê aquelas cenas que fazem com que passado e presente, fictício e real comecem a se misturar. Como os próprios artistas explicam: “o filme combina perfeitamente a realidade da arquitetura com a do corpo em movimento. A confusão perceptiva é aprofundada pelos elementos narrativos oníricos que ocorrem no filme pré-gravado.”
Janet Cardiff & George Bures Miller, Alter Bahnhof Video Walk, 2012
A lista de artistas ambulantes continua, mas vou parar por aqui. Que tal levantarmos e saírmos para caminhar?
Amei essa edição! Amo o tema e estou com saudades de caminhar em NY. Coincidentemente, tô lendo (muito lentamente) “a história da caminhada”, da Rebecca Solnit.
Amei , ame Richard Long! Sempre penso que como humanos, caminhamos durante séculos. Era tudo o que tínhamos… essa linha do caminho, significa tanto! Curioso como a atividade humana mais básica, caminhar, hj pode ser quase um privilégio né?